Lina acorda em sobressalto, deixou passar a hora, o
despertador não a acordou, salta da cama, despacha-se num ápice e sai de casa a
correr…
Passa por uma vizinha e apenas um bom dia consegue dizer, sem
tempo para mais conversa, hoje é um dia muito especial e ela não consegue
sequer imaginar chegar atrasada, há três meses confinada às paredes de casa,
sem trabalho, sem dinheiro… Hoje é o dia!
O seu passo acelerado ecoa pela rua vazia de gente, de
carros… ainda nada parece normal.
Chega ao trabalho finalmente, sobe as escadinhas da entrada,
empurra a porta verde de grandes dimensões… a porta é pesada e chia de forma
muito audível… porque mais nada se ouve. Fica parada por uns instantes, terá
entrado no sítio certo, sempre foi ali… será que mudou em três meses?
Dá uns passos, procura com os olhos o que os ouvidos não
ouvem… movimento, pessoas… aquilo que um hospital tem de tão característico.
Está tudo vazio, não existe mobiliário, não existe nada, a
entrada que outrora era um espaço pequeno para tanta gente, agora não tem nada.
Só paredes escuras, sujas… não pode ser ali… começa a andar
de volta para a porta da entrada, quando ouve algo a cair seguido de um grito!
Lina percebe que o som vem do fundo da sala onde se encontra,
muito devagar e sem provocar qualquer ruido vai até à porta de onde ouviu o
barulho, é uma porta de balanço, muito característica de hospitais, os vidros superiores
estão partidos pelo que dá para ver o escuro do outro lado, é um corredor negro,
cheio de lixo e com inúmeras portas fechadas, ela empurra a porta e de repente
uma enorme ratazana passa pelos seus pés, fica gelada, incrédula, mas a vontade
de saber o que ali se passa é mais forte, esquece o rato e continua pelo
corredor fora, muito devagar e a tentar perceber se existe alguém por ali…
alguém gritou, tem que haver ali alguém!
Lina repara que uma das portas tem sinais de movimento, está
mais clara que as restantes e se a memória não a atraiçoa é a porta para a
cave, onde guardavam todo o material do hospital.
com algum receio Lina empurra a porta, esta faz um pequeno
ruido e ela larga-a… mas volta a empurrar ainda mais devagar, está tudo escuro,
existe uma enorme escadaria que desce ao piso inferior e ela sabe que nesse
piso existe outra porta, possivelmente também fechada… pé ante pé, desce os
degraus, com a mão a seguir o corrimão e a sentir o pó não limpo há muito
tempo.
Chega à outra porta e ouve a voz de Alice, sua amiga e colega
de longa data, abre a porta quase de rompante, Alice grita de susto! Lina não
consegue e abraça-a….
A falta de comunicações há dois meses fizeram o mundo mudar,
cada um passou só a saber do seu “quintal” Lina e Alice não sabiam nada uma da
outra e eram as melhoras amigas!
Juntas abraçadas, choram, riram e trocaram mimos… Alice
contou a Lina, que nunca dali saiu, ficou a tomar conta dos seus doentes, as
ruas ficaram vazias, a comida deixou de vir, as comunicações foram terminadas,
ela e os dez doentes psiquiátricos que acompanhava nos últimos anos.
A situação estava muito difícil, porque a medicação tinha
acabado, alguns até estavam melhores, outros em situações mais complicadas. No
pequeno jardim do hospital plantaram legumes e assim se foram alimentando sem
nunca dali sair.
Joaquim estava quase curado, deixou a medicação e passa os
dias a tratar da horta, Maria também apresenta grandes melhoras, a sua voz está
cada dia mais bonita ela compõe e canta para toda a comunidade; quanto a
Gabriel ele está um pouco teimoso, quer ajudar Joaquim, mas pisa toda a horta
com falta de equilíbrio e acaba frustrado com essa situação.
Laurinda está mais feliz, a família parece que lhe fazia mal…
e todos estes anos não percebemos isso! Ela é a cozinheira, faz petiscos
deliciosos para todos nós. Mário é quem tem a mais difícil tarefa, dada a sua
formação em medicina, ele está no laboratório a inventar medicamentos, com o
pouco material que temos, há quem diga que estamos no paraíso, na terra do
Senhor.
Rafael é o inconformado, ele precisa de notícias para viver…
então criamos um teatro semanal! Ele é o coreografo e produtor… inventa as
histórias, cria as personagens, dá-nos os papeis, e cada um de nós encarna a
personagem na perfeição e fazemos as nossas próprias histórias e noticias, o
mundo começa naquela porta. Cristina tem graves lesões, o cérebro não
desenvolve mais, ela ajuda na cozinha e nas limpezas, parece feliz.
Judite é a companheira, ajuda em todas as funções, passa
horas mais Rafael a inventarem noticias felizes outras vezes bem assustadoras.
Rodrigo ficou diferente, o seu problema não é constante, pelo
que tem fazes boas e outras nem tanto, ajuda Mário no laboratório quando a sua
mente o permite.
Isabel é a mais nova, a nossa menina, tem estado bem, sente
muito a falta da família, mas tentamos todos nós ser um pouco de mãe e pai e
mantê-la ocupada nas suas artes visuais, ela faz os cenários do teatro, com
lixo e material deixado no hospital ao abandono.
Amanhã será o dia do Teatro, estão todos entusiasmados,
encontrámos no 5º andar um projetor, a sessão de teatro de amanhã é muito
especial, irá ter notícias fresquinhas e muita luz para as iluminar. Estamos
todos muito entusiasmado com a ideia, o Rafael esta noite nem dormiu, ele está
a preparar uma surpresa muito especial para todos nós, só a Isabel o acompanha
para criar toda a envolvência
Lina está ofegante, tanta informação, tanta felicidade de
estar junto dos que lhe são queridos… ela não quer mais sair dali, quer fazer
parte da comunidade!
Alice ainda nem levantou os pés do chão… não saíram da porta
desde que Lina chegou, ainda ninguém viu Lina, ela que é muito querida para
todos também.
Alice chama toda a gente, Rafael e Isabel são os últimos a
chegar… Rodrigo vem com um papel dobrado na mão, depois de todos reunidos na
sala das refeições, Alice com muita calma, lembra-os da vida há 3 meses, e das
pessoas que os acompanhavam, até mostrar Lina a todos e todos se abraçarem de
saudades! As lagrimas correm quase como torneiras… Lina passa a mão nos olhos,
está com dificuldade em ver com tanta lagrima, na sua frente está Rodrigo com
uma folha de papel dobrada em quatro para lhe dar, Lina agarra-a abre-a e as
lagrimas não a deixam ler, limpa mais uma vez a cara e afasta-se para a luz
para conseguir ler “A PANDEMIA NÃO NOS VAI DERROTAR, VAI NOS FORTALECER!” lido
isto, as luzes apagam-se, Lina deixa de ver!!!
Só ouve Piiiiiiiii Piiiiiiiiii Piiiiiiiiiii
É o seu despertador! O quarto está escuro, os olhos ainda
cheios de água!
Não passaram 3 meses, apenas mais uma noite, Lina saiu ontem
da ala psiquiátrica onde trabalha há muitos anos, a preocupação com os seus
doentes, está a consumi-la, todos eles frágeis, mas muito especiais e
importantes.
Ela está confusa, sonhou com uma possível realidade… realizou
um possível sonho…
SEJAM FORTES, A PANDEMIA NÃO NOS VAI DERROTAR, VAI NOS
FORTALECER!
Escrito a 08/04/2020 por Helena Rocha para um desafio criado pelo Laboratório de Escrita de Lara Barradas
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